Frases


"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



segunda-feira, 24 de julho de 2017

Festival Letra Viva 2017


É maravilhoso ver que Fortaleza tem vivido nos últimos meses um forte crescimento de eventos literários. Desde a recente Bienal do Livro, a Flicaixa, a inúmeros outros independentes, que reúnem as forças poéticas e narrativas da cidade, celebrando a palavra como unidade absoluta de prazer e liberdade. 
Neste cenário, soube, meio em cima da hora mas na hora certa, de um novo evento prestes a nascer, o Letra Viva - Festival da Poesia de Fortaleza. Um dos principais responsáveis, Talles Azigon, poeta incansável, que venho tendo o prazer de ver em vários destes eventos, desde que passei a frequentá-los com mais avidez. Com uma programação ampla e ao mesmo tempo compacta, o Letra Viva aconteceu nos dias 19 e 20 de julho, começando às 18h30, no centro cultural Dragão do mar, aqui em Fortaleza. 
O primeiro dia foi marcado pelo lançamento de um jornal bem peculiar, chamado "Mei-Pão". O título é uma releitura do célebre "O Pão", publicação da emblemática agremiação literária Padaria Espiritual, lá em 1892. A homenagem, além de abraçar o típico cearês (não é meio pão, é mei-pão mesmo!), concentra uma nova geração de poetas, dando vazão a essas vozes tão únicas e singulares, reunidos no impresso que de alguma maneira parece respirar os ares nobres de seu antepassado centenário. Esteticamente, o jornal também ficou muito bonito, fazendo boa referência ao estilo gráfico original. Houve ainda uma fala no auditório, onde todos receberam o "Mei Pão" como um alimento silencioso, de sabor peculiar, a ser degustado aos poucos. À frente, Talles falava da importância do evento, diante da dificuldade de se lançar livros e fazer poesia no Brasil, com custos elevados e o ainda pouco interesse por leitura.


Entre a plateia, a maioria poetas. Percebi que o evento era feito de poetas para poetas, que havia um interesse especial em cada um daqueles que ali estavam, um amor pela palavra, pela poesia. Isso ficou ainda mais evidente quando Talles pediu a cada um que se apresentasse, falasse um pouco de si. Era como uma família, todos ali, mas que ainda não se conheciam adequadamente. E vieram falas pautadas de sonhos, de vida, de ter livros publicados, de estarem ali lendo seus poemas, ou daqueles que ainda começavam a escrever. 
No segundo momento, o Letra Viva deslocou-se para a arena do Dragão do Mar, onde apresentou um sarau com todos os poetas convidados, como Francélio Figueiredo, Anna K. Lima, Jesuana Prado, entre outros. O fim da noite foi marcado por intensas declamações, chamando a atenção do público que por acaso passeava pelas imediações do centro cultural e era convidado a sentar-se no pequeno auditório improvisado ao ar livre. 





Já o segundo dia foi aberto por uma ótima palestra, intitulada "Possibilidades para a edição literária, com o Talles, representando sua editora, Substânsia e Silas Falcão, da Luazul edições. 
Uma conversa bastante franca, focada nos processos editoriais e seus desafios, da concepção à publicação de um livro. Ambos falaram de experiências próprias, enumeraram os muitos profissionais envolvidos no trabalho e sobretudo a paciência necessária para conduzir cada etapa da empreitada, ainda mais sabendo que nem sempre tudo sai como o esperado. 
Temas recorrentes dos dias de hoje, como a autopublicação (que barateia muitos custos) também foram discutidos, além da opção de zines e outros formatos de publicação. O público participou ativamente, com perguntas e comentários. Muitos ali já tinham lançado livros, ou estavam maturando melhor essa ideia. 



Alguns trechos que consegui recolher desta fala:
"Acho interessante projetar recortes do livro a ser lançado antes de ele ser comprado. Assim já criar uma atmosfera a quem ainda não conhece. Sejam bem-vindos ao livro *citou um título qualquer*. Faço muito isso na casa Juvenal Galeno, onde costumo lançar livros" – Silas

"Não lancem livros em época de propaganda eleitoral, as gráficas ficam todas voltadas aos políticos" – sugeriu a poeta Jesuana Prado.

"Estamos na era da imagem, temos de usar isso a favor do nosso trabalho" – Talles, falando da importância da capa do livro

"Não tenha prazo específico para lançar um livro. O tempo contado mata os processos, acelerar resultados nem sempre gera bons resultados" – Silas

"Pesquise e procure saber quem são as pessoas e empresas com as quais você está trabalhando na hora de pensar em publicar. E responda sempre: o que você quer com o seu livro? Aonde quer que ele chegue?" – Talles 



Para fechar o segundo e último dia de festival, todos se encontraram novamente no espaço da Arena, onde aconteceu mais uma roda de poesia, com participações de mais poetas convidados do evento, como Tetê Macambira, Alan Mendonça e outros. 
Só senti falta da feirinha poética, de livros e publicações dos poetas participantes, que constava nos dois dias de programação, e por alguma questão interna não aconteceu. Felizmente, neste último dia, o amigo e poeta Antônio Baticum, conhecido por saraus de resistência em vários bairros da cidade, levou alguns livros de doações, improvisando um espacinho bem convidativo, ao lado da vibração do sarau. Ali, ao som dos versos, entre o apanhado de livros, encontrei bons achados. 



Aproveitei ainda para enfim adquirir um livro do Talles, que fiz questão de que ele assinasse. Foi um momento bastante especial. Quando o conheci efetivamente, na Flicaixa, em maio, era ele quem comprava e buscava uma assinatura da escritora Angela Gutiérrez. Faz pouco tempo, sim, mas senti de alguma maneira um elo muito forte de energias neste ciclo.
O livrinho, "MARoriGINAL", com poemas de Talles, é de rara beleza, dotado de simplicidade acolhedora. Enxuto, preciso, direto, que de cara já vi também como provável referência para uma futura publicação minha. Daqueles livros que dá gosto de ler, sobretudo por se conhecer o autor. 



Festival Letra Viva, um grande momento, celebração da poesia, da literatura, do amor pelos livros e palavras. Fortaleza precisa de cada vez mais eventos assim, que transpirem, incendeiem, contagiem. Revi vários amigos, fiz tantos outros e mesmo os que não consegui falar, fiquei feliz de ver lá. O melhor de eventos como esse, como percebo cada vez mais, é a chance de conhecer, interagir, com pessoas que estão neste mesmo caminho, que buscam a cada dia se superar e se surpreender, encantadas com os rumos da vida – acolher, e ser acolhido.
Parabéns ao Talles Azigon e a todos os envolvidos na produção e que venha logo a segunda edição! 



quinta-feira, 20 de julho de 2017

Literatura em Revista - Julho 2017



Estive pela segunda vez no ótimo Literatura em Revista, evento mensal produzido pelo querido Talles Azigon, poeta e produtor cultural, no Centro Cultural BNB, aqui em Fortaleza. Desta vez, o encontro aconteceu na biblioteca local, o que foi certa surpresa a princípio, mas com o tema "os livros que amamos, clubes de leitura e bibliotecas", o ambiente de fato não poderia ser mais favorável.
Não sabia exatamente o que esperar desse debate, e acho ótimo quando isso acontece, quando se está aberto ao inesperado, à surpresa do momento. Nos primeiros minutos, que começaram inclusive um pouco mais cedo que o divulgado, foi possível entender melhor a ideia do encontro.
Três convidados, responsáveis por clubes de leitura, falariam de suas experiências ao realizar e interagir com pessoas e, sobretudo, com livros. Eram eles Alessandra Jarreta, Fernando Alves Cardoso e Larissa Alverne. Ainda não conhecia nenhum, mas já tinha ouvido falar de seus clubes.
Cada um fez uma breve apresentação, falando do conceito de seus clubes, de como começaram, tudo de maneira informal. Se mostravam amantes de literatura, não se diziam estudiosos acadêmicos, o que lhes conferia um patamar talvez mais humano, mais perceptível ao sentimento puro de se ler algo e de se querer falar sobre esse algo da maneira que se pode. 



Ao lado do trio, o mediador, o próprio Talles, circundava temas comuns e buscava interagir o público com a dinâmica do encontro. Havia muita gente, pessoas interessadas, que esticaram o tema a várias direções, sobre os clubes, sugerindo livros, comentando autores, celebrando a literatura. 
Só acho que a acústica local não ajudou, perdi ou confundi várias palavras (ou os convidados falaram baixo mesmo), e que deveria talvez ter havido mais destaque aos "livros que amamos", ditos corridinhos no final.
Contudo, uma excelente iniciativa, que a meu ver tem sua principal força ao proporciar contato com outras pessoas de alguma forma ligadas ao fazer literário, seja alguém da área, como se diz, ou mesmo um amante engajado. É desses contatos que nasce a certeza de que muita coisa boa está por vir. São o tempero especial de qualquer debate, aqueles minutinhos finais antes de ir embora, onde muitas vezes pode-se conhecer mais do que se pensou conhecer daquele que falava lá na frente. 
Levam-se muitas reflexões, aprendizados, que vão muito além dos nomes dos livros ou dos autores citados. 



quarta-feira, 5 de julho de 2017

FliCaixa 2017 (3/3) – Xico Sá / Fabrício Carpinejar


Fotos: Denis Akel

Posts anteriores da série FliCaixa 2017:
FliCaixa 2017 (1/3) – Socorro Acioli e Angela Gutiérrez 

Finalmente fechando a série sobre a Flicaixa 2017, foco agora na última das três mesas que pude assistir naquele sábado, 5 de maio, que trouxe o poeta Fabrício Carpinejar e o cronista Xico Sá. A mesa foi uma das mais aguardadas do dia, sendo prevista para começar às 19h. Tive algum tempo, após a mesa anterior, mas fiquei pelos corredores do centro cultural, olhando o movimento, aquela atmosfera que, de certa forma, já começava a deixar saudade. 



PRIMEIRAS OBSERVAÇÕES 

Estes dois, como eu bem sabia, com vasta obra publicada e sobretudo grande presença na mídia, redes sociais e o que mais inventarem, não estariam para brincadeira. Como era de se esperar uma superlotação, decidir ir logo ao auditório, garantir um bom lugar e depois não arriscar ficar sem lugar nenhum. 

Entrei quando ainda havia pouca gente, mas já bem mais pessoas que em ambas as mesas anteriores. A maioria dos que ali estavam ocupavam-se em seus celulares, vi com certo pavor a imensidão de telinhas brilhosas. E era muito fácil se tornar um deles. É algo cada vez mais comum nos dias de hoje, sem dúvida, mas de alguma forma é uma cena que me assusta, pela fragilidade da posição humana ante o aparelho. É inevitável, sim, mas nem por isso deixa de ser chocante. Apesar da epidemia de telinhas luminosas, uma ou outra pessoa conversava ou lia algum livro e havia até livros de Carpinejar nas mãos de outros poucos. 



Peguei minha caderneta para já esboçar algumas linhas destas observações, quando notei alto falatório e conversas paralelas, das cadeiras vizinhas, além de um ruído constante de papel dobrado – tratava-se da sacolinha da livraria lá de fora, que no ambiente fechado ressoava como uma trovoada. 

Por volta das 19h, o auditório já bastante cheio, mas não lotado. Os preparativos finalmente tiveram início no palco, arrumação das poltronas, mesas d'agua. O público, porém, parecia demorar a perceber que era hora de ficar quieto e continuava as múltiplas e inusitadas conversas paralelas, e como incomodavam, mas ao mesmo tempo inspiravam; histórias recolhidas são sempre materiais em potencial para escrever. E segui no caderninho, apoiado na perna, a rabiscar um pouco do que sentia. 

NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA

O apogeu de meu desconforto viria poucos minutos antes do início da palestra. Não bastasse o vozerio constante, alguém começou a bater com o pé em minha cadeira. De início, pensei ser algo inconsciente ou acidental, mas logo percebi que não. Era uma batida ritmada, quase necessária. Uma verdadeira tortura. Num giro rápido e disfarçado de pescoço, consegui ver meu desafeto: um senhor de magra estatura, expressão concentrada, cabelos grisalhos. Não parecia nem de longe o tipo provocador ou encrenqueiro, mas as batidas continuavam. 

Pensei em reclamar, sem me exaltar, pedir que parasse, que incomodava, mas antes que pudesse acolher essa ideia, o homem parou, como que se antevesse a mim. Respirei aliviado, não seria preciso dizer nada. Coisa nenhuma, um minuto depois as batidas recomeçam. Percebo, estudando o problema, que a pancadinha não é dada exatamente na minha cadeira, mas na cadeira ao lado. As poltronas do auditório eram daquelas que, antes de sentar, é preciso estabilizar o assento, que fica fechado. O pé do sujeito incidia justamente contra a parte do assento que ficava projetada pra baixo. O impacto reverberava na estrutura e chegava com relativa força à minha cadeira, o suficiente para gerar o incômodo. Uma solução bastante simples seria se alguém ocupasse aquela cadeira vazia, limitando o homem de sua diversão. Torci para que isso acontecesse, mas ninguém apareceu. Tive a ideia de colocar minha mochila ali, ocupando a cadeira, levantando o assento. A medida trouxe efeito, e desfrutei de momentânea paz. O homem, porém, logo descobriu outro meio de continuar as batidas: atacar diretamente o pé da cadeira, a reverberação fez seu papel e recomeçou o tormento. Percebi que não iria parar, não tinha jeito. Tive de falar. Virei, e com jeito, lhe disse:

– Com licença, o senhor poderia por favor parar de bater? Tá incomodando... 
O homem na mesma hora se endireitou na cadeira, como que saindo de um transe, me olhou com espanto:
– Oh, sim, claro, claro, desculpe, viu? A gente fica distraído, pensando, sem querer acontece isso e... 
– Tudo bem, tudo bem, acontece. 
Ele ainda quis continuar se desculpando, mesmo após eu me voltar à frente, como se não tivesse lhe acreditado. Falei que estava tudo tranquilo, não se preocupe. Meio minuto depois, voltou a insistir em se retratar. Nada do que dissesse parecia suficiente para justificar seu deslize.  
– Não tive intenção... você entende, né? 
– Claro que sim, não tem problema.
– A gente fica aqui, distraído, você sabe, né? Você também tem isso, né? 
Acabei concordando, para que se aquietasse. E também porque a palestra já estava prestes a começar. Depois fiquei pensando, como assim eu também tinha isso? O que o homem quis dizer? Tive ímpeto de dizer mais alguma coisa ao sujeito, mas me contive. Felizmente, nesse exato momento surgiram no palco os convidados da noite, Fabrício Carpinejar e Xico Sá, e levaram minha atenção daquela interferência. 

MESA  - NARRAÇÃO DE AFETOS (XICO SÁ / FABRÍCIO CARPINEJAR) 



Havia 
algumas almofadas sobre as cadeiras do palco. Mal Carpinejar entrou, tratou logo de atirá-las ao público, num gesto quase incontrolável, como se fosse mais forte do que ele. Parecia quase uma criança, improvisando uma diversão com o que tinha à mão, ou seria apenas a sua necessidade de sempre querer aparecer e chamar a atenção um pouco mais? O sorriso irreverente já engatilhado, acompanhado dos tradicionais óculos que muitas vezes o fazem parecer uma mosca. 

Carpinejar sentou a uma das cadeiras, Xico Sá assumiu a outra e o mediador do encontro, o jornalista Jáder Santana, entre ambos. O auditório, praticamente lotado, recebeu o trio com prolongadas palmas e vi quando as dezenas de telinhas se ergueram no ar, para o fuzilamento de fotos. Eu mesmo empunhava uma delas. Passada a euforia inicial, a conversa finalmente teve início. Com o tema narração dos afetos, era bem evidente que ambos os autores falariam de temas que lhes são bem comuns, como relacionamentos, futebol, rotina de trabalho etc. Além disso, era notável uma sinergia entre esses dois, que são grandes amigos, inclusive já tendo feito essa mesma mesa na Flicaixa de Salvador. Estavam muito à vontade ali, muito seguros de si. 

Jáder, após breve introdução de cada um, começou bem direto, perguntando que crônica eles escreveriam hoje, naquele momento. Xico Sá partiu de um desabafo irônico, falando de sua família, que depois de tanto tempo de seu trabalho, ainda não sabe para quê serve literatura. 

"Eu estou um pouco numa fase de rasgar convicções infinitas, aquelas coisas que a gente pensa ter certeza. Para entender essa desgraça do país, vejo com otimismo. Escrevo com afeto, é uma colcha de retalhos, de família, de quem amamos." – Xico

Já Carpinejar se disse inspirado pela força poética de Fortaleza. Citou uma moça que lhe deu um poema escrito numa folha, e de como a cidade pulsa poesia. "Sempre me impressiono com Fortaleza pela quantidade de poetas que há aqui. Acho que Fortaleza não perdeu o reduto de resistência, não se rendeu ao digital. Os artistas daqui ainda confiam na palavra, que ela ainda possa driblar a crítica." – Carpinejar

CASUALIDADES QUE INSPIRAM

Nos primeiros minutos, ambos os escritores falaram bastante de seus hábitos e rotinas na hora da escrita, e contaram algumas histórias bem curiosas. Xico Sá, que é muito conhecido também por aparições em programas de TV, foi bastante sincero:

"Falar uma besteira na TV não tem muita importância para mim, mas por num livro é algo muito diferente, é difícil, é profundo. Já escrevi crônicas com muita facilidade mas hoje em dia tem sido difícil, tenho que limpar muito. O que escrevo atualmente é impublicável. A escrita da máquina de escrever, você sabe que uma hora vai acabar, mas no computador não acaba nunca! Escrevi de maneira muito clara e limpa quando escrevia para jornal. Agora quero e tenho feito textos mais incompreensíveis. Guardo as crônicas mais loucas e solto as que dê para entender algo. O cronista é um pescador de casualidades. Ele se distrai para ficar mais atento. O cronista é invisível, tem que ser. " – Xico

Falando em casualidades (e também invisibilidade), Carpinejar contou que quando tinha uns 7, 8 anos, resolveu 'ficar' invisível, e escolheu logo o dia em que seu pai recebia o poeta Mario Quintana em casa. Nas artes de criança, Carpinejar achava que aquela célebre pomadinha Minancora, poderia ser a chave da invisibilidade, tirou a roupa e a aplicou por todo o corpo. Em seguida para testar, comprovar seu feito, foi à sala onde o pai conversava com Quintana. Ficou na frente deles por vários minutos e não houve reação, eles não o viram, ignoraram aquele menino pelado todo coberto de pomada. Voltou ao quarto, acreditando de fato estar invisível. Era demais para a pobre criança. Mas tinha de ter absoluta certeza. Tornou à sala e começou a dançar na frente dos dois. O pai o olhou com uma cara que até hoje não esquece. No fim das contas, ficou sim invisível, do futebol, por três meses. 

"Meus textos vêm muito da família, quem me vê falando da minha mãe numa crônica, vai ver a sua mãe. Falo da minha e o leitor vê a sua" – Carpinejar 

O poeta gaúcho aproveitou ainda este momento para citar o grande Paulo Mendes Campos, e sua obra Infância Azul, que precisa ser mais lembrada. 

CRONISTAS RIVAIS? 



Jáder questionou a existência de uma possível rivalidade entre cronistas, entre eles, por exemplo, de um pegar uma coisa do outro, de invejar uma ideia, coisas assim. Xico e Carpinejar sorriram, como cúmplices silenciosos. 

"Fico feliz quando vejo uma crônica bem escrita, que me emociona, por alguém tê-la escrito eu não precisar" – Carpinejar, referindo-se a uma crônica de Xico. 

"A crônica é meio que o PF da literatura" – Xico

"Mas o PF é o melhor, né?" – Carpinejar 

A simples menção e analogia da crônica a um prato de comida fez com que Carpinejar se manifestasse de uma maneira bem própria sua. Segundo ele, há uma teoria do prato "bonitinho" para o prato bagunçado. Quanto mais organizado, mais tímida, travada, a pessoa é. Pratos bagunçados são de pessoas muito falantes, extrovertidas. 

"Olhe como a pessoa come o PF e saberá como ela é na cama" – Carpinejar

Nessa hora pensei: será que isso se aplica também às crônicas, se elas são o PF da literatura? Será que crônicas bonitinhas e mais bagunçadas ditam os comportamentos de seus autores? Xico Sá não comentou nada quanto a isso. 

PARA SE DEIXAR SER VULNERÁVEL 

Jáder Santana, o mediador da conversa, desviou o assunto para o amor, tema comum na obra de ambos. Vocês dois escrevem sobre o amor... sentem que são ouvidos?

"Não falamos para mulheres. Falamos para os homens, mas eles não nos escutam. A mulher compra roupa e demora um tempão para tirar etiqueta. O universo feminino nunca termina. Já o homem tem um medo, um medo de estar vulnerável. Nossas crônicas são para fazer os homens se deixarem ser vulneráveis." – Carpinejar

"Temos muita autoironia, de nos autoesculhambar, de não se levar a sério" – Xico

"O homem fracassado é vitorioso. Quem perdeu tudo não tem nada a perder. Os homens o tempo inteiro têm que provar que são homens. Ninguém pode ser natural com tantas regras" – Carpinejar

A mesa tinha constante teor cômico. A todo momento risos vinham do público e mesmo do próprio trio do palco. Alguns elementos-chave, ditos no início, voltavam de vez em quando, gerando novas discussões – e piadas. Foi mais ou menos assim que tornaram a falar da minancora. Xico disse que a conhecia como pomada São Sebastião, possivelmente um genérico. 

"Tem afeto maior que mãe passando Vicky no peito do filho?" – Xico

Xico Sá falava com grande ternura, como se agora pudesse sentir mais, perceber mais. Ele recentemente teve uma filha, desfruta a alegria da paternidade. Era notável como estava mais sensível, mais aberto. 

A FIGURA MASCULINA E OS PADRÕES ESTÉTICOS

Falando sobre a questão de afetos e relacionamentos, focaram na figura masculina, de beleza, feiúra e ditos padrões estéticos, mesclando humor com realidade:

"O estranho é uma promoção do feio. Uso essas roupas, esses óculos, para dispersar a atenção de mim" – Carpinejar

"O bonito tem conquista imediata e fraudulenta. A beleza é passageira. A feiúra é para sempre" – Xico

Apesar de ambos terem uma energia parecida, e de até meio que completarem bem as colocações, eram bastante diferentes, distintos, o que gerava interessantes divergências e contrapontos, de forma a engrandecer a conversa. Eu me divertia tomando notas de suas falas, recolhendo referências e mesmo olhando as pessoas em volta para ver suas reações às falas da dupla. 

CRONISTAS NA ERA DO FACEBOOK E A REALIDADE DOS DESFAVORECIDOS



Como ser cronista em tempos de Facebook, onde todos são? Foi a pergunta lançada a seguir por Jáder. 

"Fico feliz com muita gente escrevendo. A gente não pode querer ser melhor do que os outros. O que quero é um abraço bem dado nas palavras – Carpinejar

"O escritor não tem obrigação de ser amostrado, somente de escrever. Tenho amigos tímidos que escrevem muito, são geniais, mas esquecidos – Xico

E seguindo essa linha, Carpinejar completou:

"São escritores que não têm apoio do estado, estes são os escritores de verdade" 

"Esses caras precisam ser publicados, estão fora desse barulho das redes, não têm obrigação de falar nada no palco" – Xico

Achei muito interessante esse ponto da conversa, os dois autores, cercados de mídia e ativos em todas as redes, falarem dos mais desconhecidos e desfavorecidos. Certamente, há mesmo muita gente nessas condições, alheias a esse mar de informação, a esse exagero de vozes, de imagens. Mas penso, por que eles não ajudam esses caras de alguma forma? Por que não lançam algum projeto voltado à visibilidade dessas pessoa? Seria ótimo ver esse tipo de incentivo, de publicar autores desconhecidos, partindo de outros já amplamente abraçados. 

PERDAS E GANHOS DO RECONHECIMENTO 

Seguindo essa discussão, Jáder perguntou: o que o escritor perde e ganha quando tem muito público? 

Xico Sá falou que tem um conflito, que era ser mais conhecido como o 'menino do Saia Justa' (Programa da GNT). Ficava chateado porque sempre escreveu a vida toda. Tal como Carpinejar, diz que se eventualmente perder as aparições em TV, será o que sempre foi: escritor. 

"Nossa cabeça antes de tudo é o mundo do papel, do livro. Fico sempre entre o amostramento e o bicho guardado querendo ser mais do que é." – Xico 

"Não tenho preocupação, tenho dupla personalidade. Ser poeta é tudo o que não consigo dizer. O cronista rouba do poeta, mas rouba pouco. O poeta é triste, o cronista é alegre, é do mundo. Na crônica, meus amigos são reais, na poesia, são irreais. O cronista, meu lado cronista, é como um irmão, diferente, mas da mesma família." – Carpinejar

QUAL A HORA DE SE ESCREVER UMA CRÔNICA?


Além das perguntas e comentários do mediador, com alguns minutos passados, o debate foi aberto às perguntas do público. Como acontecia em todos, uma pessoa da produção ficava encarregada de passar uma folha entre as pessoas que queriam perguntar, e uma vez ali anotadas, o papel era encaminhada ao mediador. Foi assim nas anteriores, mas não seria bem assim nessa. 

Quebrando mais uma vez os protocolos, Fabrício Carpinejar interceptou a folha, questionando o sentido daquilo, dizendo que era muito melhor se cada um fizesse sua própria pergunta no microfone. De fato, deixaria tudo bem menos pomposo. E para selar sua sentença, o poeta simplesmente rasgou a folha em pedacinhos, os atirando à plateia, dando uma de suas características gargalhadas. Podíamos talvez ter passado sem essa. 

O público começou a se manifestar diretamente. Alguém perguntou aos dois quando surge a vontade de escrever, quando vem a inspiração? Carpinejar e Xico Sá se entreolharam num risinho, como se estivessem prestes a responder a essa pergunta pela enésima vez. 

"A grande musa é o prazo de escrever. Escrevo no último momento. A crônica jornalística é uma encomenda, um trabalho, não tem frescura, levante e escreva, tem hora, prazo, tem que fazer. Não tem que depender da musa, não pode esperar. Escrita é disciplina. Escrever com ou sem inspiração, depois corta, depois joga fora. Senta e escreve. Tá sem assunto? Pega um livro e lê ou dá uma volta e vê algo na rua que te inspire. A crônica tem essa urgência. – Xico

Concordando que o prazo de entrega é sempre importante, e aproveitando isso do sair para buscar inspiração, Carpinejar completou:

"Uma vez, encontrei o Xico em Pelotas. O que tu tá fazendo aqui? Ele disse: procurando a crônica!"

Xico contou uma pequena história que tinha lhe acontecido mais cedo, naquele mesmo dia, quando encontrou pelas ruas um menino, vendedor ambulante, lhe vendendo óculos Ray Ban. Os óculos claramente não eram originais, mas a maneira como o garoto os anunciava, os vendia, inspirou o cronista, que já tirou deste fato a ideia de que precisava. "O cronista vive de pequenas histórias" – Xico

"Tive muitos pesadelos com crônicas, que tinha escrito mal, e até hoje, às vezes, essas ideias me seguem. Como cronistas, temos truques, porque temos às vezes quinze minutos pra escrever, mas daí a estar bom... você sabe, tem consciência de que não está muito bom." – Xico.

SEM MICROFONE, UMA PARTICIPAÇÃO INESPERADA 

Carpinejar pontuava, completando e adicionando à fala do colega com experiências próprias do ofício de cronista. Logo ambos começaram a citar alguns cronistas esquecidos no tempo, como o cearense Rafael Caneca. Foi mais ou menos nessa hora que alguém na plateia se manifestou, e não precisou sequer do microfone.

A voz veio de alguém bem atrás de mim, uma voz ampla e decidida, típica de quem aparenta segurança no que diz. Após virar a cabeça, como todos ou quase todos fazemos involuntariamente, para vermos, de algum modo, quem está falando, vi com certa surpresa que se tratava do homem que tinha chutado minha cadeira! Ele falava sobre o cronista Airton Monte, também cearense, da importância de sua obra, e do quão ela necessitava ser reeditada. O homem expressava-se com grande eloquência, deixando claro que era mais do que um espectador comum, talvez um jornalista? Professor? Escritor? Fiquei bastante curioso. Seu timbre de voz, alto, cheio, dispensava microfone, enchendo o auditório. No palco, os autores ouviam atentos e concordaram, reforçando novamente a necessidade destes autores esquecidos de serem trazidos de volta. O homem da pergunta, contudo, não pareceu muito satisfeito, como se esperasse que dissessem mais algo. 

SER ESCRITOR NO BRASIL, UM POUCO DE FUTEBOL E A IMPORTÂNCIA DOS LIVROS NA VIDA DAS CRIANÇAS 



Logo surgiu uma outra pergunta, vinda de alguém nas primeiras fileiras do auditório: hoje em dia, ainda se precisa sair do Brasil para ser escritor?

Ambos dizem que não, mas é Xico quem dá a deixa: "Em qualquer lugar que se está, pode-se ter uma proposta de um editor e se levar a sério. Aqui mesmo no nordeste, não precisamos mais da mediação do sudeste para nada."

Veio ainda uma questão sobre algum texto que Xico escreveu sobre futebol, publicado em certo jornal que não iam mas acabaram falando o nome. Não consegui entender muito bem do que se tratava, mas algo sobre eleições que se relacionava a futebol. Citaram o nome de alguns jogadores, completando o tema. "Jornais costumam ter listas do que se pode falar mal e do que não pode. Todos têm. O que me interessa no futebol, para escrever, é o drama humano, dessas pessoas, os esquemas táticos, deixo para quem entende". – Xico

Os intelectuais foram fundamentais para você? Foi uma pergunta que alguém do público dirigiu a Capinejar:

"Meu pai deixava riscar, desenhar os livros. Estavam ao alcance. Depois ele ia lá, os consertava como podia. Ao evitarmos isso, estamos afastando as crianças dos livros. Meu pai me tinha mais importante que os livros." – Carpinejar
"A gente escreve quando tem um grande contador de histórias na família. Nós queremos salvar essa memória, nos equipararmos, esse é talvez o maior incentivo" – Carpinejar

OS MUITOS AFETOS POR BELCHIOR 

E o tema final desta mesa de afetos foi trazido, inesperadamente, pelo homem que dispensava microfone. Ele, aliás, tinha lapsos de comentar ou falar de vez em quando, entre as falas dos autores, com propriedade e admirável ousadia. Ouvi, como todos, em alto e bom som, quando perguntou: o que acham da perda de Belchior?

Xico e Carpinejar claramente não esperavam aquele tema, mas adoraram quando surgiu. Tanto que antes de responderem qualquer coisa, Xico sacou o celular e colocou uma trilha sonora, Coração Selvagem, e só depois comentaram. Carpinejar começou lembrando que Belchior já estava sumido quando ficou um tempo num convento. Já Xico considera que o sumiço do compositor foi justificado com uma narrativa muito pobre para alguém tão genial. "Penso que foi uma escolha. A ideia de narrar uma vida só com isso de dívidas é muito pouco. Ele era muito mais, estava traduzindo, criando..."

E enquanto o eterno rapaz latino americano continuava entoando uma de suas mais emblemáticas canções, no celular de Xico, foi cogitado o que teria acontecido se Belchior tivesse voltado. Carpinejar achava que ele não conseguiu reagir à força da esposa que queria evitar isso, mas ninguém pareceu concordar dessa vez.

"É triste, mas eu acho que ele não sabia o quanto era amado", concluiu o poeta. Para o senhor que dispensava microfone, que participava amplamente da discussão, Belchior não conseguiria viver publicamente nos tempos que estamos vivendo hoje, como também não conseguiriam Elis Regina e Glauber Rocha, citados por ele, artistas que morreram no auge das carreiras.

AFINAL, SOMOS FELIZES? 

Jáder Santana, mediador do debate, retomou a voz ativa no finzinho, retomando também o tema narração dos afetos, e quis saber o que eram os afetos e felicidade de ambos.

"A felicidade é um contentamento, queremos ser felizes de qualquer jeito, mesmo que não seja a melhor maneira. E a felicidade só importa pra gente. Nós nunca perguntamos aos outros se estão felizes, talvez com medo da resposta. Olhar o instagram dos outros não é ver como o outro vive, mas o que te falta" – Carpinejar

"A gente não presta atenção no outro, a gente vive muito não prestando atenção e perdemos muito por viver assim." – Xico



O relógio já marcava além das 21h quando a mesa foi enfim encerrada. Aplausos estrondosos vieram de todos os lados, as pessoas se puseram de pé. O trio, no palco, agradeceu a ovação e posou para as centenas de celulares que os tinham como alvo. Eu desta vez estava mais preocupado em cumprimentar melhor o senhor que dispensava microfone, fiquei bastante curioso para saber quem ele era, o que fazia, mas tão logo me virei, só consegui vê-lo sair apressadamente, no meio da massa de pessoas. Guardei seu tipo físico, roupas e o fato de estar com uma mochila. De repente o encontrava lá fora, pensei. E empunhei a câmera para me juntar ao bolo de flashes e telinhas piscantes. Sair do auditório não foi tarefa fácil, as duas saídas congestionadas. Não quis me apertar no meio daquela gente, quase como se lutassem para descer de um ônibus ou avião. Esperei a poeira baixar. Teria ainda uma longa jornada pela frente, estava para começar a sessão de autógrafos.

O ÚLTIMO DA FILA



Era notório que esta mesa, sendo a última do dia e com os convidados mais conhecidos do grande público, teria mesmo este recorde de presença. Quando cheguei à área dos autógrafos, vi uma fila gigantesca, contornando os corredores. Carpinejar e Xico Sá, no meio da multidão, dividiam-se para atender ao que depois percebi serem duas filas distintas. 





Não comprei nenhum de seus livros, embora até tenha considerado, mas achei todos muito caros. Como estava recém-saído da intensa movimentação da Bienal do Livro, onde interagi com vários escritores, achei que deveria ao menos conversar com um deles agora. Mas não fui de mãos vazias, levei um livrinho do Carpinejar, que tinha comprado num outro evento que contou com sua presença, o ETC, também aqui em Fortaleza, em 2012 (Veja aqui). Um livrinho bem diferente, feito apenas com suas citações do twitter




Por alguma razão, decidi não me juntar logo à fila. Percebi que teria de passar muito tempo em pé. E como aparentemente não chegaria mais ninguém, notei que poderia muito bem esperar sentado, numa das muitas mesas que havia nos entornos. Ali, observando o movimento, o ir e vir, os risos, os muitos abraços nos dois autores, fiquei escrevendo em meu caderno, pensando as vantagens de se ser o último de uma fila. As pessoas ficam na fila para não perderem seus lugares. O último da fila pode escolher não ficar, não tem mais o que perder: já é o último. 



Poder ficar ali, confortavelmente sentado, sabendo que teria minha vez garantida, mas sem ter que ficar colado a todos, de alguma forma me inspirou até a escrever e desenhar qualquer coisa nos minutos de suspensão que se seguiram. Ainda procurei o senhor exótico da palestra mas não vi sinal dele, certamente já tinha ido embora, não tinha o tipo de quem ficaria para pedir autógrafos. 

Cerca de quarenta minutos depois, quando só faltavam uns três ou quatro a serem atendidos pelo poeta (Xico já tinha encerrado suas assinaturas), foi que me levantei e assumi meu lugar na fila. Algo que achei curioso, estando ali já perto do espaço destinado aos autores, foi ver que havia vários daqueles pedestais organizadores de fila arrumados de modo a conter as pessoas dos autores, sendo abertos apenas para liberar a passagem de cada um por vez. Ora, para que tudo isso? Havia muita gente, sim, mas todos bem comportados e tranquilos, sem alvoroço. Qual a finalidade de se resguardar tanto os autores, como se, através daquelas proteções estivessem assegurando a integridade de, digamos, os "animais mais preciosos de seu zoológico"? Comentei esse fato com uma das diretoras do lugar, que concordou, rindo, e logo começou a afastar os pilares. 

DIANTE DO POETA, TUDO SE DESPERTA



Me vi diante de Carpinejar. É sempre uma sensação estranha, essa de estar numa fila de autógrafos. Já falei desses momentos em vários posts aqui ao longo dos anos. Costumavam ser situações que eu preferia evitar, mas que invariavelmente se mostraram necessárias, uma vez que, de um jeito ou de outro, permitem estreitar algum contato com esse ou aquele autor, mas isso não muda o fato de ser um momento estranho. Nunca se sabe direito o que dizer, naquele tempinho tão curto que parece durar uma vida. Enquanto não chega nossa vez, ficamos pensando, tentando arrumar na mente as palavras, os assuntos, o que se quer dizer, o que perguntar, ou simplesmente o que não dizer. Quase como se estudássemos para uma prova iminente. E quando é hora de dizer, as coisas não saem como planejamos, o que tem um lado bom, afinal o imprevisto muitas vezes é o melhor dos temperos, garante boas surpresas. 

Enquanto a maioria das pessoas debruçava sobre ele cópias de seu livro mais recente, eu trazia este que mal era visto na pilha dos livros disponíveis ali para compra. Percebi que aquele livrinho do evento de 2012 talvez fosse, de certa forma, uma supresa para ele. Provavelmente não o esperava. Após os cumprimentos iniciais e enquanto eu lhe falava, o poeta pegou o livro nas mãos e começou a folheá-lo, detendo especial atenção nas orelhas, como se há muito tempo não visitasse aquilo. Leu as citações, quase como se encontrasse a si mesmo em um passado distante. Observando tal transe, me contive a não falar tanto, a respeitar aquele momento. Ele já não lembrava de mim, daquela outra vez que lhe falei, em 2012, já não lembrava sequer daquele outro evento, mas lembrava muito bem do livro. Gostou de vê-lo comigo. Parabenizei da palestra, disse que tinha voltado a acompanhá-lo e que também escrevia. Falei até bastante, ele agradeceu, comentou qualquer coisa, mas a melhor resposta não foi em palavras, foi ter visto a maneira como seu próprio livro, que tinha apenas 5 anos de publicação, de alguma forma o fez parar breves segundos, e se permitir uma volta àquela realidade, àquele passado recente já tão longíquo. E assim, ele assinou o livro, dedicando a mim o que chamou de "breviário do profano". 

A HORA E A VEZ DE XICO SÁ 



Após o encontro com Carpinejar, já me preparava para enfim ir embora. Foi quando tive a ideia de cumprimentar também Xico Sá, que por acaso ainda estava por lá, andando tranquilamente com um ar de que eu sabia que me receberia bem se o interpelasse. Ainda cheguei a dar uma melhor olhada em seus livros à venda, mas os preços realmente não facilitavam. 

Mesmo fora da formalidade de fila e autógrafos, Xico me acolheu como a um velho amigo. Não li ainda nenhum de seus livros, mas já ouço seu nome há tempos, de programas como o Entrelinhas da TV Cultura, das crônicas que publica nos jornais e sites, e mesmo de outras palestras e eventos. Foi uma troca rápida, um afeto instantâneo, assim de improviso, sem tempo para ensaiar palavras, tudo bem natural. Grande figura, grande momento enfim conhecê-lo.  

E lá fora do Centro Cultural, enquanto aguardava meu carro, já além das 22h, tive uma última grata surpresa, ao ver Xico aparecer com sua filhinha no colo, a pequena Irene, de poucos meses. A pequenina dormia, abraçada ao pai. Junto a ele, estavam outras pessoas da família, num momentinho particular longe do grande público e da mídia. Me aproximei, acenando. O cronista disse que ela tinha vindo conhecer a terra do pai (Xico é natural do Crato, aqui no Ceará). 

Foi engraçado ter este último momento, conhecendo sua filha. Lembrei de que, meses atrás, em fevereiro, quando estive numa oficina literária do escritor Marcelino Freire, em Recife, e uma das primeiras coisas que se comentou por lá, no primeiro dia, foi "nasceu a filha do Xico Sá!". Era quase como se eu, vendo agora a pequena Irene, de alguma maneira, também fizesse parte deste ciclo. Comentei isso com ele, que riu enternecido. Xico estava radiante, com a menina no colo. A paternidade lhe fazia transbordar de alegria. Me despedi de todos, daquele momento tão belo quanto singelo, e seguimos nossos caminhos. 

UM AMBIENTE MEMORÁVEL 

Satisfeito com aquele dia que mais pareceu durar um mês, fiquei rememorando na mente um resumo de tudo o que tinha vivido em tão poucas horas. Foi um belíssimo evento, uma grande iniciativa da Caixa Cultural, em reunir uma programação tão atrativa. Intenso, profundo, lírico, é difícil definir a complexidade de minha experiência naquele dia, ainda mais considerando que foi poucos dias após a igualmente intensa Bienal do Livro do Ceará 2017 (da qual haverá posts aqui em breve). Tinha quase uma sensação de estar viajando, de estar longe, estando perto, uma realidade incomum dentro de uma aparente rotina. 

Não posso deixar de comentar também as mudanças que a Caixa Cultural fez para tornar seu espaço mais acolhedor e receptivo. Quem conhece o lugar, sabe que há um espaço que seria dedicado a um café e a uma livraria mas que, sabe-se lá por que (provavelmente razões políticas), quase nunca é usado com esses fins, ficando sempre vazios e inutilizados. É muito comum ir para algum show ou apresentação teatral lá e ter a dificuldade de fazer um lanche ou mesmo de uma simples água. De café, só mesmo o nome "café cultural", numa placa lá no alto. Existe a ideia, mas algum problema a impossibilita de ser posta em prática. Bom, impossibilitava. Durante os dias da Flicaixa, vi com imenso assombro aquele espaço ocupado, com venda de lanches, bebidas e, claro, cafés. 





Ainda, o espaço da livraria, ao lado, igualmente ocupado, por livreiros que tinham vindo de Salvador especialmente para vender os livros dos autores presentes na festa literária. Essas mudanças ajudaram a tornar a vivência da Flicaixa realmente única, diferente da maioria dos eventos já ali realizados, onde, uma vez terminados, se ficava meio perdido, por não haver mais o que fazer, o espaço não favorecia conversas ou oferecia sequer água a seus frequentadores. No horário de maior movimento, a tarde de sábado, dia 5 de maio, os saguões do Centro Cultural estavam lotados de pessoas, de movimento, de vida e sobretudo, de literatura. Não seria muito exagero dizer que me senti quase como se estivesse em eventos como a FLIP, dada a intensidade que percebi em tudo. 

FLICAIXINHA E O FUTURO DA FLICAIXA

Show da companhia Dona Zefinha agitou o palco no domingo da Flicaixa

A Flicaixa, porém, não terminou nesse dia. No dia seguinte, 6 de maio, domingo, houve a parte final da programação, a Flicaixinha, voltada às crianças. Conversas e práticas com autores, como Tânia Dourado e André Neves, contação de histórias, finalizando com show da companhia cenomusical Dona Zefinha. Estive por lá mais para acompanhar os momentos finais do evento, mas as coisas estavam bem diferentes. 

Apesar de ter contado com uma excelente programação, a primeira edição da Flicaixa, a meu ver, foi bastante curta. Colocar todas as mesas centrais em apenas um dia deixou o segundo dia mais vazio, com bem pouco movimento no café e livraria, quase como se eles não fizessem mais sentido estar ali. Conforme conversei com algumas pessoas da produção e da própria Caixa, o evento ainda está em fase inicial e certamente, após o sucesso que tem feito por onde passa (veio de Salvador, e daqui de Fortaleza seguiria ainda para Curitiba), a próxima edição será maior e mais completa. Para uma primeira vez, eles estão de parabéns, todos os envolvidos. O evento nasce ainda como um forte impulsionador da arte literária em Fortaleza, que ultimamente tem recebido inúmeros eventos voltados à escrita. 

Esta mesa final foi, sobretudo, uma divertida conversa, que quebrou protocolos, arrancou bons risos, enalteceu a crônica como gênero da urgência e ainda homenageou Belchior. Chego assim ao final desta série, que me foi especialmente única. Conheci muita gente incrível, de energia contagiante, revi vários amigos e respirei dessa atmosfera tão maravilhosa que permeia qualquer evento dedicado à literatura. Agradeço a todos que porventura leram estes posts e vamos em frente.