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"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (VI - Literatura e Loucura)


Fotos: Denis Akel

Para esta sexta postagem, uma das mesas mais surpreendentes e reveladoras que tive o prazer de assistir nesta Bienal, Literatura e loucura, com Jackson Sampaio. Aconteceu na quinta-feira, 11 de dezembro, às 15h, no Centro de Eventos, na já tradicional sala 2 do mezanino 2.

Quando soube que haveria uma mesa com esse tema, fiquei bastante entusiasmado. A ideia e associação da arte literária com algum tipo de distúrbio psicótico é sempre recorrente, desde tempos remotos, sendo difundida, partilhada e defendida por inúmeros intelectuais do brasil e do mundo. De cara até lembrei de uma participação do grande Rubem Fonseca, em 2012, num evento literário em Portugal, que falava exatamente disso, mas deixarei isto para o fim da postagem. Embora agora eu ainda não soubesse quem era Jackson Sampaio, me inspirou grande curiosidade em conhecê-lo, por tratar esse tema tão interessante e necessário, e vi que provavelmente estava diante de mais um momento marcante deste evento.

Nesta quinta-feira, eu tinha chegado ainda de manhã à Bienal, com o intuito de explorar mais um pouco a feira, as oportunidades. Almoçaria lá mesmo, apesar das fracas opções de pratos e por volta das 14:40 seguiria já para a sala da palestra. Diego Akel, meu irmão, desta vez estava me acompanhando. Ele, inclusive, disse que já conhecia nosso palestrante, Jackson Sampaio, que agora eu soube ser o reitor da UECE, uma das principais universidades aqui de Fortaleza. Diego, que já estudara lá, disse que ele era muito conhecido e conceituado. Fiquei logo pensando "Puxa, o reitor da universidade... com certeza vai dar praticamente uma aula em forma de palestra!", de modo que a excitação só aumentava.

Como já mencionei nas postagens anteriores, era comum todas as mesas e palestras atrasarem, às vezes menos, às vezes mais, o atraso parecia fazer parte do cronograma. Acostumado a isso, resolvi dessa vez chegar mais perto do horário, a fim de passar menos tempo esperando. Contudo, mesmo faltando 15 minutos para as 15h, quando cheguei me deparei com a sala inteiramente vazia, exceto o rapaz que cuidava do sistema de som/vídeo, que na ocasião até me tomou como o palestrante. Desfiz a confusão e ele disse que já poderíamos entrar, se não nos importássemos com o frio da sala. Ora, justamente por isso que eu estava com aquela grossa camisa gola polo, impossível de se usar em casa, nesse calor doentio, mas maravilhosamente boa ali. Aliás, nunca é demais lembrar que os ares-condicionados do Centro de Eventos continuam ótimos. Tomamos, então, lugares bem à frente, pertinho do palco, onde àquela hora as duas poltronas ainda aguardavam, vazias.

Embora marcada para as 15h, foi só nesse horário que começaram a chegar as primeiras pessoas, inclusive o próprio palestrante, Jackson Sampaio. Como falei, ainda não o conhecia, mas Diego sim. E quando surgiu aquele senhor que aparentava grande sabedoria e propriedade, perguntei a meu irmão se ele era Jackson. Diego confirmou com a cabeça. O semblante sério, concentrado, do professor só me fez ter mais certeza de que coisa boa estava por vir. A sala começou a ser ocupada, mas percebi que aqui também haveria um público bem pequeno, o que não seria ruim, se fosse interessado. Uma câmera foi logo instalada num tripé, bem no centro da sala, provavelmente para registrar a conversa, o que parecia ser um hábito comum (já tinha visto em outras), embora eu já soubesse muito bem que esse registro provavelmente não seria divulgado depois.

Marisa Aderaldo, professora de literatura hispano-americana, seria a mediadora, e quando, por volta de 15:20, todos já haviam sentado, ela deu início aos trabalhos. O professor Jackson, então, percebendo a fraca frequência no auditório, sugeriu que todos que estivessem sentados atrás viessem mais para a frente, e os da frente fossem ainda mais para frente. Mais do que isso, ele mesmo puxou algumas das cadeiras das primeiras fileiras, sugerindo que todos fizessem o mesmo, e meio que as circundassem em torno do palco. Uns aceitaram, colocando a cadeira para a frente, outros apenas se deslocaram para uma fileira mais próxima. Com todos já mais perto do coração da conversa, Marisa fez uma breve apresentação do convidado, e aproveitei para conhecer um pouco mais sobre ele. Jackson Sampaio tem formação em medicina, com especialização em psiquiatria. Exerceu diversos cargos em hospitais e em inúmeras universidades pelo Brasil. É autor de diversos livros e publicações científicas, tendo também uma respeitável obra poética e literária. Agora pensei alguma coisa como "Nossa, com uma carreira tão específica, ele ainda se dedica às letras..." e não pude deixar de lembrar do saudoso Moacyr Scliar, um de meus escritores favoritos, também médico.

Jackson então começou, dando continuidade ao que Marisa havia inicialmente proposto, ao falar que boa parte de sua obra, já publicada em vários idiomas, agora começava a ser publicada em húngaro. Ele disse que isso é divertido, pois pela primeira vez não conseguirá entender o que escreve. Ainda, o professor falou um pouco sobre a curiosa origem da língua húngara, desde os tempos dos Montes Urais. Suas palavras pareciam cobertas de grande embasamento, de modo que não havia como questionar ou duvidar. A princípio, abordou literatura e o ato da criação literária. Seguem algumas colocações de Jackson que pude recolher deste começo, antes de necessariamente se entrar no clímax da palestra:

A literatura não deve ser carreira ou orgulho, deve ser como respirar. Toda expressão artística tem a ver com humildade e democracia. 

Se eu não me expresso, eu não sou.

A poesia é rigorosamente fácil, comparada às artes plásticas. Ela pode vir a qualquer hora. 

Não é preciso ser uma pessoa culta para ser um artista. 

Logo, o professor começou a penetrar no tema-base, a relação entre literatura e loucura, estabelecendo interessantes correlações:

A grande vantagem do poeta é que ele vai, finge, e volta. O poeta é um psicótico que alucina de maneira controlada. O esquizofrênico não.

Toda a arte está sempre escapando daquilo que é comum, que é consenso, que é verdade. 

A inutilidade da poesia atual se traduz em enorme liberdade.

Não importa o substrato onde se escreve. Pode ser uma tabuleta ou um tablet, um papel ou pergaminho, você sempre encontra um jeito de se comunicar dentro de um código.

Há momentos em que é preciso produzir algo que ninguém entenda. 

A psicose é simplesmente quando alguém constrói perguntas e respostas que só ele entende.

Exemplificando esses conceitos, citou uma cena de um filme do italiano Pier Pasolini, no qual um pintor quer pintar algo que ninguém entenda, evidenciando traços de uma psicose, e ainda talvez um reflexo do próprio Pasolini, que também era pintor. A cada palavra, sentença, mais me interessei por aquele assunto. O professor falava com grande presença, como que dando mesmo uma aula, com uma dicção e ritmo precisos, que dava gosto de se ouvir.




Grandes poetas eram doentes mentais. Grandes poetas também não eram. Não é uma relação de causa-efeito. 

Gosto muito da metáfora bíblica de Adão, de dar nomes às coisas, dar nomes aos sem nomes. Deus cria Adão e Adão cria a língua. Os escritores, os poetas, sobretudo, continuam o trabalho de Adão, continuam dando nomes, a coisas e sentidos sem nomes.

Jackson contou a peculiar história da origem da palavra maluco, que se relaciona com o topônimo (nome dado a uma localidade) Malucas, (Ilhas Molucas, na Indonésia), partindo do vocábulo local Maluku, em consequência da impressão que os malucos, habitantes daquelas ilhas, teriam causado aos portugueses, pela ação sangrenta e prolongada, de quem luta feroz e cegamente, durante o levantamento que sustentaram em 1570.

Boa parte das palavras ditas pelo professor Jackson vinham acompanhadas de suas origens e curiosidades, de modo que estávamos também tendo quase uma aula de etimologia. O termo 'louco' porém, não foi muito explorado por, segundo o professor, este ter uma origem bastante obscura, não se chegando a um concesso. Ele ainda mencionou algumas possibilidades, e disse que se alguém soubesse mais, se pronunciasse, o que não aconteceu.

Falou da curiosa origem de Gotham City, como sendo o apelido carinhoso de Nova Iorque. A história conta que, segundos provérbios ingleses, haveria uma vila chamada Gotham ou Gottam, significando Goat's Town (Cidade das Cabras) em antigo anglo-saxão. As pessoas que moravam nessa vila eram consideradas pouco inteligentes, bobas, talvez porque a cabra fosse considerada um animal burro. Dizem ainda que na verdade as pessoas só se faziam de bobas, para evitar a ira do rei John, assim desviando o rei da rota da vila. Jackson desenvolveu mais um pouco, e concluiu brincando: estão vendo até onde uma conversa como essa pode nos levar? Ao Batman! Risos gerais preencheram o auditório.

Todos os super-heróis são esquizofrênicos, são duplos. Quem são realmente?

Loucura, hoje, é todo comportamento que não se ajustar ao ideal que uma sociedade tenha de sim mesmo. A palavra deixou de habitar o mundo da psiquiatria. Por isso, quem faz poesia, só pode ser louco (risos). Poesia, uma coisa que não tem qualquer valor de troca. 

A poesia é o oposto da Coca-cola. O máximo valor de troca pelo menor valor de uso. O valor da Coca-cola é o valor que o marketing cria.

A poesia hoje não tem quase nenhum valor de troca, mas o máximo valor de uso, pois segue dando nome ao inominável, e dando sentido àquilo que não sabemos que sentimos. 

O conceito de novo e velho não tem nada a ver com arte, com poesia. Os autores antigos, gregos, são bem mais interessantes que a revista Piauí. 

Uma boa poesia não significa que seus sentimentos são bons.




Com pouco mais de uma hora decorridos, a palestra se abriu para perguntas do público. A primeira pergunta foi na verdade um pedido, para que o professor fizesse uma reflexão sobre um possível elogio à loucura, ao que Jackson respondeu em vários segmentos, dos quais destaco os centrais:

A angústia dos jovens de hoje é simultaneamente quererem e não quererem ter estatuto.

A arte é reconhecida pela fruição de um outro. 

O desabar na psicose é desabar num mundo sem sentido. Quando se delira, mais se aprofunda a lógica psicótica do que a supera. 

Disney digeriu e cuspiu todas as histórias da idade média. De origem nas histórias dos irmão Grimm, elas perderam sua essência. 

Carolina Campos, neta do contista Moreira Campos, que mais uma vez estava presente a um debate, fez um pequeno aparte, citando o artigo "Escrever", do poeta inglês W. H. Auden, que lera na publicação Serrote nº16. Auden é considerado o maior poeta inglês do século XX, sua obra influenciou e influencia gerações de poetas. Uma de suas célebres citações: "Por que você quer escrever poesia?" Se o jovem responde: "Tenho coisas importantes a dizer", então não é um poeta. Se responde: 'Gosto de curtir as palavras, ouvindo o que elas têm a dizer', então talvez se torne um poeta." Carolina contou ainda que sua mãe, a escritora Natércia Campos, costumava dizer que um escritor deve sempre começar com um 'era uma vez' e terminar com um fecho, que não se pode viver no conto.

O escritor não tem que esperar esse insight criativo, não precisa enlouquecer para produzir. – Jackson Sampaio

Não tenho nenhuma alucinação que tive na juventude, tenho liberdade por não ter mais esses desejos. – Jackson Sampaio

As perguntas iam se tornando mais comentários do que questionamentos, pedindo a ele que discorresse mais sobre alguns temas, explorando assuntos paralelos que se ramificavam dos centrais. O professor seguia, expondo seus ideais:

Nós temos uma sociedade que acha que não tem marca. Temos uma volúpia quase neurótica pela juventude. Hoje não há limites para adolescentes, muitas pessoas de 50, 60 anos, levam a vida sem qualquer preocupação, como se fossem adolescentes.

Tudo o que é sólido desmancha no ar – Jackson cita Marx, em seu pensamento metafórico, na questão da modernidade, da sociedade burguesa, em contraponto à atual.

Em certo momento, o professor foi perguntado a respeito de seu processo de criação, se costumar registrar todas suas ideias, e se por acaso se levanta do sono para anotar alguma coisa. Jackson foi direto: O texto é uma expressão, se tem intenção, já virou livro de auto-ajuda. Toda arte é policênica. Todo artigo científico é monocênico. Se uma ideia não permanece na minha memória no dia seguinte, é porque não era boa. Não costumo me levantar do sono para anotar ideia nenhuma.




O professor falou também de um exercício que lhe foi proposto por um jornal, o qual ele já faz há anos. Consiste em se por ideias complexas em apenas 2000 caracteres com espaço. Disse que é uma experiência muita rica, na qual visa sempre manter a clareza, e isso lhe permite controlar e filtrar muito bem suas ideias.

Prestes a concluir a palestra, Jackson mencionou (e repetiu várias vezes para que se pudesse anotar) ainda as três modalidades da poesia, ou três modos retóricos, de acordo com o poeta americano Ezra Pound:

Melopeia – Aquela em que as palavras são impregnadas de uma propriedade musical (som, ritmo) que orienta seu significado.
Fanopeia – Um lance de imagens sobre a imaginação visual
Logopeia – "A dança do intelecto entre as palavras", que trabalha no domínio específico das manifestações verbais e não se pode conter em música ou em plástica.

Uma poesia tem que estar próxima da música. – Jackson Sampaio

Após esta última colocação, seguiu-se um breve silêncio e percebi que afinal chegáramos ao fim da palestra. A professora Marisa então assumiu a palavra: Não sabemos o que está saindo na cabeça de cada um, mas com certeza estamos saindo dessa conversa mais ricos, conclui, sorrindo. Uma grande salva de palmas se fez ouvir. Jackson então finalizou: Quem veio para cá, foi atraído pela loucura ou pela literatura? Deixando o público numa inusitada – e bem-vinda – interrogação, propondo uma reflexão que afinal só poderia começar ali, no final da conversa. Bem, acredito que fui mesmo por ambas, para ver como uma alimentava a outra, e o resultado foi surpreendente.

Ao contrário de boa parte das mesas e palestras anteriores, nesta não houve momento para autógrafos ou nada parecido, o que foi de certa forma lamentável. Fiquei muito curioso para conhecer os livros de Jackson Sampaio, sua obra poética, ou mesmo os livros acadêmicos. O professor apenas conversou com um ou outro, nos momentos pós-palestra e logo deixou a sala.

Uma palestra-aula brilhantemente conduzida. A iniciativa de Jackson em aproximar as cadeiras do palco, quebrando o protocolo, a tornou uma conversa com ar mais informal, quase como se todos tivessem se reunido para escutar histórias do pai ou de um tio que há muito não viam. E para encerrar a postagem, aproveitando o tema da loucura, volto a falar na intervenção de Rubem Fonseca, que mencionei lá no início, e que cabe tão bem aqui. Quando saí do mezanino 2, da palestra de Jackson, a todo instante lembrava de Rubem, do seu "Nós aqui nessa mesa somos todos loucos, cada um à sua maneira", de modo que acho a circunstância perfeita para trazer o vídeo à tona:




Na ocasião, Rubem citou, em um discurso cativante, o que se precisa ser para ser escritor: louco, alfabetizado, motivado, paciente e imaginativo. A citação de Doctorow: Escrever é uma forma aceita de esquizofrenia, com a qual ele inicia sua fala, pode resumir e explicar muito bem toda essa questão de literatura x loucura, somada a tudo o que foi dito por Jackson Sampaio em sua palestra.

A seguir, a penúltima postagem desta série, com a mesa A Influência estética de Moreira Campos, com Ana Miranda, Adriano Espínola e Jorge Pieiro.

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