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"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (V - Produção literária brasileira contemporânea)


Fotos: Denis Akel

Seguindo com a série relativa à Bienal do Livro do Ceará 2014, chego agora à quinta postagem, centrada na participação do escritor Luiz Ruffato, na mesa Produção literária brasileira contemporânea. A palestra, mediada por Sarah Diva, aconteceu na mesma sala que as anteriores, no mezanino 2, do Centro de Eventos, no dia 9 de dezembro, uma terça-feira, 19:00.

Ver o nome de Luiz Ruffato entre os destaques da programação desta Bienal foi uma grande satisfação. O escritor mineiro talvez possa ser considerado um dos mais destacáveis escritores brasileiros em atividade, com uma carreira relativamente nova, mas significativa. Já o conhecia de nome de inúmeros festivais, entrevistas e palestras, no âmbito literário e jornalístico. Acho, porém, que a organização da Bienal poderia ter dado mais importância a Ruffato, uma vez que não havia sequer uma foto sua no folheto de programação, diferente de Lira Neto ou Xico Sá, outros "pesos pesados" que puxariam – ou deveriam puxar – os maiores públicos. Uma palestra que tivesse Luis Ruffato para tratar da questão da produção literária brasileira sem dúvida seria de suma importância num evento como a Bienal, e agora, um tempo depois, posso afirmar sem dúvida que ela foi tão boa quanto a de Lira e bastante superior à de Xico.

Cheguei por volta das 18:50. Percebi que não adiantava chegar muito cedo, uma vez que as mesas e palestras sempre atrasavam consideravelmente. Subi direto ao mezanino 2, pois seria mais um dia que não pretendia comprar livros nos expositores. Logo de cara, já vi Luiz Ruffato, à entrada da sala. Ao lado do escritor, a tradicional mesinha com seus livros à venda. Entrei e tomei um lugar, bem à frente; a sala estava vaga, com um público bem reduzido, talvez o menor que eu tenha visto até então. Felizmente, até o final, este público aumentaria, não muito, mas aumentaria. Abri o notebook, que dessa vez seria a peça base para anotar trechos e apontamentos e esperei, observando a movimentação crescente à minha volta.

Após as introduções e patrocinadores, Sarah Diva e Luiz Ruffato assumiram suas posições no palco. Sarah Diva, professora de literatura comparada e mestra em estudos literários, estaria à frente desta conversa, que enfocaria não só um panorama da produção literária brasileira, mas também um pouco da vida e obra do próprio Ruffato.

Com a palavra, Sarah fez uma breve apresentação de Ruffato, mencionando que seu primeiro livro, Histórias de Remorsos e Rancores, data de 1998, e que de lá para cá já tem 16 anos de uma carreira literária de grande sucesso, traduzido já para várias línguas, passando por vários gêneros – uma carreira extremamente rápida. Procurei não dar muita atenção a esses dados, números e estatísticas, que muitas vezes não representam a real grandeza do artista, apenas servindo para meio que "justificar" o fato de ele estar ali, no centro dos holofotes, como se, não fosse tudo isso, não estivesse apto àquele momento. Esta é sempre uma boa reflexão a se fazer.

Sarah então começou perguntando como ele se sente hoje, se olha para o passado ou se está sempre pensando no próximo projeto literário. Luiz Ruffato, primeiramente, agradeceu o convite e a todos os que estavam ali presente, em plena terça à noite. Em seguida, disse que é de uma família pobre, que por isso não teve qualquer registro fotográfico de sua infância e adolescência. Para ele, é quase como se tivesse duas vidas. Não tem lembrança nenhuma de ter qualquer interesse de pensar em futuro. Em sua infância e adolescência, desejava apenas ser uma pessoa honesta, ter estudo, seguir os ideais que seus pais desejavam para ele. Falou ainda da época em que fez tornearia mecânica, que seus pais acharam que ele finalmente deslancharia. De lá, acabou fazendo um curso, depois chegou ao jornalismo e em seguida à literatura. Ruffato comentou ainda que se sentia ignorante perto de seus colegas de universidade. Para mudar isso, começou a ler compulsivamente.

Há dois grandes momentos de pensar na literatura brasileira. No século XIX, com José de Alencar, e no XX, com Mário de Andrade. Não considero Mário de Andrade um grande escritor, mas é essencial para se entender a literatura brasileira, a partir do que aconteceu no século XIX. Embora Andrade não cite Alencar de maneira explícita, está sempre dialogando com ele. – Luiz Ruffato

Ruffato contou como José Lins do Rego, a quem considera absolutamente verossímil no universo da literatura rural, lhe foi uma grande influência, no início de sua carreira. Inicialmente, percebeu que não havia representação do trabalhador urbano na literatura brasileira, por isso decidiu escrever sobre isso, focar nesse tema, tal como Rego focou sua literatura regional. Ruffato passou 15 anos querendo, mas não podendo, por não ter competência para tal. Então partiu de um exercício para buscar a estética necessária para conseguir escrever finalmente o primeiro romance.

É importante ter pretensão para conseguir construir um lugar singular na literatura brasileira. Como não havia ninguém que se dedicasse àquele momento, decidi me dedicar a ele. Publicava contos, mas chamava de romances, e vendia. Me diziam que contos não vendiam, não davam nada.  – Luiz Ruffato



Quando perguntado sobre a questão de prêmios, disse não estar preocupado com isso, mas sim com a construção de seu projeto literário, O Inferno Provisório, obra composta de cinco livros sobre o operariado brasileiro, concluída em 2011. Sarah completou, citando a metodologia de outros escritores, como Guimarães Rosa e Murilo Rubião, onde o primeiro cuida de seus textos como se fossem filhos, até a hora de publicar; o segundo os refazia exaustivamente.

Eu escrevo para leitores, não para pesquisadores. Nada contra pesquisadores, claro – Luiz Ruffato

A professora trouxe ainda à tona a série Amores Expressos, perguntando a Ruffato como foi a experiência de participar do projeto da editora Companhia das Letras, que levou 16 escritores a 16 cidades ao redor do mundo, com o objetivo de escrever um romance na volta. Aproveito para dizer o quão interessante é esse projeto, com sua proposta inovadora, que deveria servir de base para outros similares, uma vez que expande nosso eixo cultural, traz um pouco dessas cidades para cá, leva daqui para lá, encurtando distâncias e criando sonhos, sejam na ficção ou não. Foi produzida ainda uma série de 16 episódios, mini-documentários, nos quais se acompanha um pouco da vivência do escritor na cidade, bem como suas ideias e possibilidades de escrita. Infelizmente, esse conteúdo – que deveria estar sempre em evidência – fica fechado a passar vez ou outra em canais como o Arte 1 e TV Cultura. Na internet, encontrei somente trailers e teasers. Uma pena.

Sempre fui péssimo repórter, na época do jornalismo. Consegui me achar como editor. Como repórter, não conseguia cumprir pauta. Inventava coisas, escrevia horóscopos, escrevia cartas para eu mesmo responder, até ver que não dava. Fui o primeiro autor a ser convidado ao Amores Expressos, durante um carnaval com meu filho.

Na ocasião, inclusive, ele contou que a ligação veio para o celular de seu filho, pois nas palavras do próprio Ruffato: não tenho celular, nunca tive e nunca terei. O escritor, que inicialmente seria designado a Paris, disse que recusou a capital francesa, optando por Lisboa, pois queria um personagem seu, brasileiro, indo a terras portuguesas, e isso seria bem inverossímil de se ver em Paris.

Leio muito prosa de ficção, sou viciado. Gosto ainda de história e poesia. Sempre tenho três ou quatro livros de poesia. Não gosto de ler o livro inteiro. Gosto de ler o mesmo poema às vezes repetidas vezes. Tenho veneração por poesia por achá-la quase outro gênero, diferente de literatura. – Luiz Ruffato

O legal da poesia é republicar o mesmo livro sempre, bastando mudar o título, por um ou outro poema. As pessoas sempre vão comprá-lo. – Luiz Ruffato

Larguei o jornalismo em 2003, para o bem do jornalismo. – Luiz Ruffato

O escritor não pode ser acomodado. Precisa trabalhar todos os dias, se dedicar, não pode esperar que a esperança bata à sua porta. – Luiz Ruffato

Enquanto a conversa fluía, corri um pouco a atenção pela sala, prestando atenção às outras pessoas e a como elas pareciam ouvir aquilo. Perto de mim, duas tomavam notas com grande afinco. Suas canetas, intrépidas, não paravam de escrever; seus olhos pareciam brilhar a cada título de livro, cada fala de Ruffato, como que realizados. Fiquei curioso para saber quem eram, o que pretendiam, focados daquele jeito.

O que mata um escritor é a sensação de conforto. Não se pode virar uma máquina de repetição. Em cada livro meu, busquei uma sensação de desconforto.  – Luiz Ruffato

Com quase uma hora decorrida de palestra, Sarah Diva abriu para perguntas do público. A primeira pergunta foi sobre seus livros futuros, vinda de um canto da plateia que parecia abrigar os fãs e seguidores mais fervorosos do autor, que conheciam – ou deviam conhecer bem –  suas obras. Eles disseram ter visto Ruffato escrevendo alguma coisa ali nos arredores do Centro de Eventos e queriam saber do que se tratava. O escritor riu, disse que tem projetos para novos livros, mas ainda em estágios iniciais. Atualmente, tem se ocupado muito de sua coluna semanal no jornal El País, e era justamente o que estava escrevendo quando foi visto.

Coluna semanal dá uma trabalheira danada. Às vezes é preciso escrevê-la em todas as brechas possíveis. – Luiz Ruffato.

Ruffato citou uma pergunta que lhe foi feita pelo jornal Zero Hora. Em ocasião do final do ano, perguntaram-lhe: o que aprendeu em 2014? Não aprendi exatamente, mas aprofundei mais a amar as pessoas. O escritor falou ainda da crise que as eleições causaram nas pessoas, de separá-las, julgando seu modo de pensar, mas que nunca deixou de amar ou os amou menos por conta disso. Cada um é diferente do outro. Ninguém é igual.

Amar é um grande exercício de tolerância. – Luiz Ruffato

A vida pode ser inverossímil, a arte não. – Luiz Ruffato

As histórias fantásticas tem que ter uma coerência interna, a coerência da literatura, não da vida.  – Luiz Ruffato



Ainda dentro do tema, citou o escritor italiano Luigi Pirandello, que trabalha com o absurdo com a verdade da literatura, não da vida. A questão do tempo e espaço me interessam muito particularmente. Os romances do século XIX eram no tempo sucessivo, tudo tinha uma ordem para acontecer. Hoje em dia já devem ser em tempo simultâneo, onde tudo acontece ao mesmo tempo. O romance tradicional foi criado para a burguesia, para se contrapor à aristocracia. Nessa época, ele é totalmente simbólico; há o amor, há a dor, são signos. A burguesia então criou uma espécie de carteira de identidade, identificando portanto personagens.

Ruffato, além de dizer não usar celular, disse também não ter qualquer rede social, dando particular ênfase ao facebook. Quando perguntado do porquê não ter um perfil, disse simplesmente que não tem porque não lhe pagam, soltando uma gargalhada em seguida. Eu também adoraria ter um blog, mas como não teria retorno financeiro, prefiro não. Seu tom pareceu irônico demais, muito forçado, já quase querendo se tornar engraçado. Fiquei em dúvida se ele falava sério ou estava brincando, mas logo ele próprio acabaria se contradizendo, como observei mais a seguir.

Não tenho nada contra a internet, muito pelo contrário, acho que ela valorizou muito a literatura. Hoje em dia, todos estão escrevendo, todos estão publicando, e há ainda os militistas que criticam, sem motivo, as feiras de livros, as vendas de livros etc. Qual o problema de vender livros? Isso é ótimo para Fortaleza, é ótimo para o brasil. 

O escritor abordou também a arte abstrata, mencionando uma exposição que viu certa vez, que reunia inúmeros calçados jogados a um canto. Achou aquilo estranho, e tentou entendê-los de todo o jeito, mas não conseguiu. Na verdade, achou aquilo uma bobagem, uma besteira, e por isso se pôs a tentar desvendar aquilo, até que o curador lhe explicou que os sapatos ali amontoados tinham um sentido, cada um pertencera a uma pessoa, tinha deixado marcas, pegadas etc. Somente aí a mente do escritor se clareou, e ele passou a compreender melhor essa linha artística.

Ruffato, conforme observei em alguns momentos, demonstrava uma certa teatricidade no palco, com traquejos linguísticos que eram ganchos perfeitos para risadas e descontração, o que a princípio achei desnecessário, mas depois considerei talvez não ser realmente ruim, uma vez que pelo menos estava conseguindo ter a atenção de todos, à medida que explorava esse ou aquele assunto.

Explicou ainda os conceitos de romances com foco no realismo socialista e capitalista: realismo socialista, uma coisa horrorosa. Romances coletivos onde o homem comum não interessa, só interessava a história. Já o realismo capitalista é construído a partir das histórias individuais, tal como ficou O Inferno Provisório, que tenta escrever biografias de pessoas que não tem biografias, expor histórias de pessoas quase invisíveis. Jogar uma luz sobre pessoas que ninguém vê e não tem a menor importância. 

Queria colocar nomes nas ruas de pessoas que nunca tem seus nomes nas ruas, como "pipoqueiro fulano de tal" – Uma citação muito válida, que leva a uma contundente reflexão sobre dar importância a quem não a tem. Ainda, esta curiosa citação não foi por mero acaso, uma vez que o pai de Ruffato foi pipoqueiro e o próprio escritor também desempenhou o ofício, durante a juventude.

Perguntado sobre como as obras novas podem ficar no futuro, ele citou o filósofo alemão Heigel, que diz que quando você faz história, você não sabe que está fazendo história. Isso não deve ser preocupação do escritor, ele deve simplesmente escrever, e bem. O escritor não deve se preocupar com essas bobagens. A mesma pessoa tornou a perguntar: como chegar às editoras? através de concursos? Ruffato foi incisivo: não choramingar, batalhar. Se você acredita que é um escritor de verdade, vá à luta, tenha coragem. É uma batalha diária, acredite no seu trabalho. Quem está batalhando sempre vai à frente, diferente daquele que apenas diz que faz, e não faz. 

Para finalizar, o escritor paulista fez questão de citar dois livros que nenhum escritor pode deixar de ler, por questões estéticas. Fez ainda uma breve pausa de suspense antes de revele-los, com pompa de quem iria dizer quase um segredo indizível: Dom Quixote, toda a pós modernidade está nele; e Ilusões Perdidas, por ver toda essa coisa do escritor que quer chegar lá mas não faz por conta. Leia os dois livros, quem quiser ser escritor vai aprender um monte de coisas neles. 

Concluída a palestra, Luiz Ruffato foi aplaudido e logo se dirigiu a uma mesinha, ali mesmo na sala, onde se pôs a autografar livros, recebendo a todos com um simpático sorriso. Pensei em adquirir algum de seus livros, mas não ali, onde deviam estar caríssimos. Diferente do que aconteceu a Milton Hatoum, porém, vi livros de Ruffato em vários expositores da Bienal, logo seria melhor tentar pechinchar depois, embora seus livros não fossem uma prioridade para mim no momento. Fiz então mais algumas fotos do pós-palestra, e saí, com a mente fervilhando, considerando e refletindo tudo o que fora dito ali naquela noite tão produtiva.




Do lado de fora da sala, grande movimentação para comprar livros do autor, para em seguida pegar seu autógrafo



Só fico até agora pensando, porém, nesse lado capitalista, quase mercenário, que se desenhou na palestra quando ele disse que não tem facebook ou blog porque não lhe pagam. Ora, essa ideia é muito relativa. É muito conveniente um escritor como ele, já estabilizado, afirmar isto, mas e quanto aos que visam se tornarem escritores? Como devem começar? Essa pergunta foi feita lá, e foi respondida por ele. Ao dizer que o escritor iniciante deve batalhar, escrever sempre, Ruffato meio que se contradiz, afinal nos tempos de hoje, usar essas ferramentas, como blog/facebook, só aumenta a abrangência que um texto pode ter. E ainda, não é fácil mal começar já querendo dinheiro, esse pensamento talvez sequer devesse ser considerado, de modo que no início da estrada é preciso escrever puramente pelo prazer da escrita, pela conquista dessa batalha diária. Uma coisa que fiquei pensando até agora... será que ele não tem celular também porque não lhe pagam?

No mais, foi uma boa palestra, melhor do que eu poderia imaginar. Luiz Ruffato traçou um interessante panorama literário, desvelando conceitos, refinando ideias, clareando um entendimento e uma curiosidade que certamente poderia fazer aquela palestra durar bem mais do que durou. Mais um grande momento desta Bienal do Livro, mais um grande aprendizado.

Para a próxima postagem, a reveladora mesa Literatura e Loucura, com Jackson Sampaio.

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