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"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (IV - Milton Hatoum no cinema)

Da esquerda para a direita: Sérgio Machado, Glauber Filho e Milton Hatoum
Fotos: Denis Akel

Nesta quarta postagem relativa à XI Bienal Internacional do Livro do Ceará, o destaque será novamente o escritor amazonense Milton Hatoum, um dos homenageados desta edição do evento.
Milton, que já estivera presente na cerimônia de abertura, bem como na mesa Infância e Memórias, faria agora sua última participação na Bienal, em uma mesa que abordaria a adaptação cinematográfica de sua obra.

Na mesa, intitulada Milton Hatoum no cinema, realizada no dia 8 de dezembro, o escritor dividiria o palco com o diretor Sérgio Machado, com mediação do também diretor Glauber Filho. Era uma das mesas que eu mais queria assistir, pois além de ter a presença de Milton, trataria do tema de adaptação de uma obra literária. Como surge o interesse para a adaptação? A linguagem se modifica? Como se dá o diálogo entre o escritor e o diretor? Qual a liberdade que compete a cada um? Eram algumas das perguntas que me vinham à mente quando pensava nesse tema, um tema sempre pertinente, sempre curioso.

Haveria duas horas e meia de intervalo entre a mesa que vi anteriormente, Biografar brasileiros, e o início desta. Usei este tempo passeando entre os expositores de livros, aproveitando a atmosfera do evento, imerso em leituras ora conhecidas, ora inesperadas, e é incrível como o tempo passou rápido, mal senti passarem essas duas horas e meia! Retornei ao auditório da mesma sala, Contos Escolhidos, pouco antes das 19h, hora prevista para o início. Havia ainda muita movimentação por conta da palestra anterior; Lira Neto podia ainda ser visto nos corredores do mezanino, muito assediado por fãs e amigos. Milton Hatoum, destaque da mesa vindoura, já estava a postos nas imediações, também amplamente solicitado.

Movimento na sala momentos antes do início da mesa

Desta vez, sentei-me ainda mais à frente, como se a cada palestra ganhasse mais confiança, mais vontade, disposto a absorver cada vez melhor os temas e assuntos discutidos. Armei minha base de operações, que consistia num bloquinho de anotações e um iPad e fiquei à espera, observando a movimentação crescente do público, que começava a preencher à sala. E com um atraso habitual de dez ou quinze minutos, a mesa teve início. Após palavras de praxe de patrocinadores e afins, Glauber Filho fez a introdução do tema, citando obras de Milton Hatoum que estão em vias de serem produzidas para o cinema.

Quando escrevi os livros, os romances, não pensava que seriam adaptados. Não penso no cinema quando escrevo, embora literatura e cinema sejam muito tênues. A literatura no século 19 já tinha um tom cinematográfico. – Milton

Não uso computador para escrever. Basta uma caneta bic e uma folha de papel, tudo é muito simples, mas quando isso vai passar para o cinema, tudo se complica. – Milton

Sérgio Machado, que está adaptando obras do escritor amazonense, falou de como Milton surgiu para ele, de como escolheu os livros, através de Maria, uma amiga sua, crítica literária. Ele pediu a ela dez livros para sondar a possibilidade de adaptação. Acabou por ir com ela à livraria. Um destes livros foi de Milton Hatoum, e os contos o fascinaram, pois eram todos feitos de imagem e ação, uma vez que Sérgio disse gostar muito mais de imagem e ação do que de diálogo.



Milton leu trecho do conto "O adeus do comandante", demonstrando um pouco desse contexto visual que permeia sua obra. Sérgio disse que pensa em seguir mais o texto original de Milton na adaptação. O diretor comentou que está fazendo a adaptação junto com Milton e Maria, o que dá ao roteiro um ar mais literário. Ele diz ser um privilégio poder trabalhar junto com Milton, que escreve muito cinematograficamente.




Sérgio então leu um pouco do roteiro, e era bastante perceptível como transbordava de imagens, mas não como um roteiro típico, havia ali um toque literário, a essência da obra estava presente, e percebi também, ao mesmo tempo, como se o roteiro fosse uma continuação do conto de Milton. O escritor escutou a leitura de Sérgio com grande atenção, como se conferindo se tudo estava no lugar certo. Quase não movia um músculo; os nós dos dedos cruzados em profunda reflexão.



A conversa fluía, instigante. Lutei para conseguir, não só assimilar e refletir tudo o que era dito, como também escrever meus apontamentos, filtrando os trechos que me fossem mais valorosos, à medida que eram ditos. Como em todas as palestras, dediquei também um tempo a observar os semblantes, ora do público, ora do trio que discursava. Enquanto observava Milton lendo, fiquei pensando o que ele sentia, ao ler ali, trechos de sua obra. Deve ser algo já comum para ele, mas mesmo assim ainda uma sensação única, e talvez até um pouco amedrontadora. Ele lia com avidez, com gosto, como se de fato vivesse tudo aquilo, acreditasse em toda aquela realidade inventada.



Entre o público, identifiquei várias pessoas que já vira nas palestras anteriores, como a curadora Mileide Flores, e a neta de Moreira Campos, Carolina Campos. Lira Neto, que há algumas horas atrás estava sentando naquele mesmo palco, podia também agora ser visto entre o público que assistia. Ele, inclusive, pediu a palavra e fez alguns comentários sobre uma minissérie de Raquel de Queiroz. O jornalista fez perguntas direcionadas aos dois palestrantes; a Sérgio, quais são os limites artísticos a que um roteirista pode se permitir? Até onde ele tem o direito de mexer na narrativa? E para Milton, como é, para você, escrever um texto originalmente para ser lido e vê-lo chegar ao texto cinematográfico?

O jornalista Lira Neto faz perguntas à mesa e chama a atenção do público

É muito ruim trair o espírito do livro, diz Sérgio, que falou ainda das obras que já adaptou, citando o filme biográfico Padre Cícero, inspirado no livro de autoria de Lira Neto, e como é difícil fazer os cortes num livro grande. Segundo o diretor, um conto é mais tranquilo de ser adaptado, sem ser preciso fazer muitos cortes.

É importante o diálogo com o escritor a ser adaptado. – Sérgio

Já Milton acha uma maluquice que o diretor faça uma cópia do original. Para ele, é meio que uma tradução de uma linguagem para outra. Milton acredita que todo escritor espera ver a essência de sua obra na versão adaptada.

Se você explicar, você mata a literatura. É preciso deixar muitas coisas em aberto. Tchekhov dizia: escreva um conto, tire o começo e o fim, deixe só o miolo. O conto se diz por si, seja breve, intenso, não diga tudo e vá cortando. – Milton

Milton falou muito no poder da imagem, de como a literatura para ele não tem comparação, não conhece fronteiras. O alcance da imagem, contudo, acaba sendo muito maior. Deu ainda uma pequena alfinetada em livros com A Cabana, livros de auto-ajuda em geral, que têm grande alcance mas pouco ou nenhum valor literário. Nesse ponto, discordo em parte. Claro que não se pode comparar, por exemplo, Crime e Castigo com A Cabana, mas daí a dizer que não há valor literário nesse último é ser um pouco extremista. Acho que tudo é muito subjetivo, afinal, se um livro faz bem a quem lê, independente do que fale ou de como fale, é o que realmente importa. A  questão estilística tem valor, com certeza, mas não deve ser o único quesito observado para esse julgamento.

A literatura é um quarto pequeno nos fundos de uma casa, e não toda essa ostentação que se faz sobre as obras cinematográficas. – Milton

Glauber Filho, mediador da mesa, diz que para ele a escrita de Milton tem um tempo muito cinematográfico.



Sérgio foi perguntado sobre como é colocar mais um personagem na obra adaptada. Ele disse que isso seria uma grande traição com o escritor. Não é preciso acrescentar nada, pois a obra por si só já prevalece. A adaptação é um encontro da subjetividade do diretor com a do escritor.

Hitchcock só adaptava porcaria. Busco sempre acrescentar um pouco meu, naquela obra que tanto me marcou, sem tirar a essência do original. – Sérgio

Toda a coisa do caráter espacial da obra vai fazer parte da obra cinematográfica, trechos simples da narração vão fazer a passagem de tempo na imagem. Houve uma editora alemã obcecada em ter a planta da casa dos Dois Irmãos – sim, a casa de fato existe. – Milton

Eu tento trabalhar com a ação e a interioridade dos personagens, um estilo conradiano. – Milton, numa referência ao escritor polaco Joseph Conrad.

Sérgio, em um dos momentos, perguntou a Milton se ele escreve biografias ou trechos sobre a vida de seus personagens, ao que o escritor amazonense respondeu:

Os escritores mentem muito. Henry James pensou e escreveu cada personagem. Ele compôs tudo, meticulosamente, cada personagem. Flaubert fazia o mesmo, pensa com cuidado em cada personagem. Eu também prefiro pensar em cada personagem. Você tem que ter um planejamento do personagem, é preciso pensar sobre eles, para saber aonde podem chegar. – Milton



Em inglês, personagem é 'character', ou seja, o caráter da pessoa. Como ela age? como ela pensa? Tudo isso tem que ser planejado – Milton

Glauber pergunta a Milton se o trabalho nesse processo de adaptação pode favorecer mais projetos similares de sua parte. O escritor diz que ainda não, que aí vai querer logo escrever um romance. Sérgio e Maria fizeram uns 87% do roteiro, eu apenas dei algumas ideias, notas de rodapé, conflitos dos personagens. Sérgio é diretor, quando ele tá com a gente, ele já vê o filme. Quem escreve, não vê a princípio o filme. – Milton

Jamais pensei em escrever. A literatura nunca me passou pela cabeça. Seria mais fácil me imaginar coreógrafo do que escritor. Penso mais na imagem. Só sei escrever imaginando a cena, a imagem. Acho o processo de escrita muito fascinante, curioso, e sempre quis entender mais esse processo. Quero aprender mais a escrever, os roteiros que vi até agora carecem de valor literário, que é algo muito inspirador. A sensação de poder filmar isso é enlouquecedora. A força do começo do conto do Milton funciona perfeitamente como imagem, sem precisar tirar ou cortar nada. É minha primeira experiência trabalhando com um escritor. – Sérgio



O mais louco do cinema é ter uma ideia e fazer de tudo para realiza-la e no final ter que tirar a cena – Sérgio

Sou muito obsessivo. Antes de filmar, escrevo um livrão, de pesquisa, de estudo, para me preparar para as filmagens. – Sérgio

Fazer um filme sobre Mário Peixoto foi como se entendesse melhor meu pai. No fundo, eu parecia falar para meu pai, através do filme. – Sérgio

Quero respeitar ao máximo a vida daqueles sobre os quais faço filmes, mas quero descobrir um pouco de mim na vida daquela pessoa. – Sérgio



No momento das perguntas do público, uma professora fez uma pergunta meio sem nexo e sentido, que demorou um tempão para ser formulada e acabaria por ser esquecida por Sérgio (eram várias perguntas dentro de uma), tendo ela que repeti-la com uma agilidade que faltou no momento inicial. Ainda assim, a pergunta continuou confusa, o diretor falou, falou mas não soube se conseguiu respondê-la. Pelo que percebi, acho que ele talvez até já houvesse respondido, em colocações anteriores. São essas típicas perguntas que podem ser resumidas a sentenças simples e diretas mas parece que todos têm um certo prazer em torná-las o mais longas e complexas possíveis.

Pouco tempo depois, Milton fez o seguinte comentário, que considero o ápice da palestra, em resposta a alguém:

Só começo a escrever um romance quando os conflitos estão armados na minha cabeça. Penso muito, e quando isso está meio armado, começo a escrever. Eles já existem antes de eu começar a escrever, pois de certa forma eles já estão na minha vida. Não consigo escrever sobre um assunto que está longe da minha vida. Gosto de romances que o leitor consiga perceber que a vida do escritor está implicada. Quando há uma entrega por parte do autor, me apaixona ainda mais. Graciliano, por exemplo, viveu aquilo, no sertão, viu um monte de coisa. Não tá escrevendo de longe, está enraizado nele. Quando tua vida tá implicada, os personagens passam por essa experiência. Quando o diretor tem um pouco dessa apropriação, é sinal de que se está no caminho certo. – Milton.

Se não houver entrega, não dá certo. Escrever é como filmar uma história de amor séria, não é qualquer namorinho não. – Milton.

E então, após uma hora e meia de palestra, a mesa chegou ao fim. Milton Hatoum agradeceu o suporte de todos e se disse comovido com o cearense, sempre hospitaleiro. Disse que entende bem isso por ser do norte, onde a presença cearense foi fundamental. Falou ainda que quando leu os 136 contos de Moreira Campos se identificou muito, eles literalmente o transformaram. O trio então desceu do palco, e se pôs a cumprimentar os fãs e amigos, em um clima descontraído que precedeu uma sessão de autógrafos com Milton Hatoum, que aconteceria ali mesmo na sala.





Sentado num birô, Milton recebeu com simpatia todos os que se dirigiram a ele. Fiquei imaginando novamente o que se passava na cabeça dele. O que estaria dizendo àquelas pessoas? E ouvindo delas? Do lado de fora, foi mais uma vez montada uma venda de seus livros, e iniciou-se o vai-e-vem de ir até lá, comprar um livro e tornar à fila, para receber o autógrafo. Me mantive observando, de longe, essa movimentação. Decididamente não estava em meus planos comprar um daqueles livros, naquela situação, por razões que comentei na postagem Infância e Memórias, de modo que permaneci lá apenas para fechar esse registro. Enquanto a maioria das pessoas se focava nos autógrafos de Milton, outras poucas conversavam com Sérgio e Glauber, ambos também bastante solícitos.





Saí da sala já por volta das 21h, com uma sensação de profundo enriquecimento, como sempre nos acontece após palestras como essa. Foi um dia muito exaustivo, no qual devo ter passado umas seis horas no centro de eventos, mas extremamente valoroso. Fiquei ainda um bom tempo com as palavras de Milton Hatoum e Sérgio Machado na cabeça, à medida que pensava e repensava o ofício de escritor, em contraponto ao de diretor. Aliás, essa foi uma das palestras que mais me fez ficar lendo e relendo a todo instante o que tinha anotado – mesmo dias depois – para buscar novamente essa sensação, esse prazer. Poder finalmente postá-la aqui é uma dupla realização, primeiro por ter ido assisti-la, depois por poder, de certa maneira, recriá-la. Esse, aliás, é bem o objetivo dessa série de postagens: recriar momentos, revivê-los.

E logo mais, na quinta postagem, a mesa Produção literária brasileira contemporânea, com o escritor Luiz Ruffato.

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